(Tela- O Viajante -sobre o Mar de Névoa)
O amor foi à função, bebeu, cantou e bailou, estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse. No dia seguinte o amor cantou e bailou sem beber, e era sempre primavera nos seus modos e falas. O amor,viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça.
Todos o queriam para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas que ele não apanhava, gerânios que ele oferecia às crianças e às mulheres.O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava .
Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto, conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-no, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram.
O amor caiu lá embaixo aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria e quando não podia mais sorrir gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida.
E desfalecendo voltava à consciência, e torturado outra vez, era como se não fosse com ele. Quebraram o amor em mil partículas, e ninguém pôde ver as partículas.
Foi sepultado normalmente no fim do mundo, que é pra lá da memória.Ninguém o localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou no terceiro dia.
( Carlos Drummond de Andrade, o Grande)
Bom fim de semana!
Um beijo
Lau
Recadinho:
Agradeço ao novo @migo que ficou por aqui. Seja bem-vindo!
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Imagem: do pintor alemão ( link) -,Caspar David Friedrich,1818.
Fonte: Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade, pág.122- Editora Record